Para a Highway Star, o Ninety One falou um pouco sobre a cena da música pop do Cazaquistão
Quando falamos de música asiática, normalmente lembramos de países como Coreia, China e Japão. Outros, como a Tailândia, estão começando a se destacar entre os fãs brasileiros, mas outros países asiáticos seguem tão distantes daqui quanto sua localização geográfica permite. Assim que a Coreia conseguiu popularizar o k-pop ao ponto de, aqui do Brasil, nos sentirmos tão próximos de seus artistas, outros países da Ásia também estão em busca de apresentar sua música para o mundo. Um exemplo notável e que talvez esteja passando despercebido entre os brasileiros é o Cazaquistão.
Com menos de 20 milhões de habitantes e apenas 30 anos desde sua independência da antiga república soviética, o país da Ásia Central tem investido em sua própria indústria de música pop: o chamado q-pop. O “Q” vem de “Qazaq”, do grupo étinico dos cazaques e que dão nome ao país. Na música, o q-pop traz uma mescla de influências da música ocidental, música local e algumas referências ao k-pop. Considerado o grupo pioneiro do q-pop, o Ninety One falou com exclusividade para a Highway Star e explicou um pouco sobre a cena que ajudou a fundar em seu país. Formado por Alem, Ace, ZaQ e Bala, o Ninety One começou sua carreira em 2015, como um quinteto, com o integrante A.Z., que deixou o grupo em 2020. E foi com o Ninety One que o termo q-pop foi usado pela primeira vez.
“A música em nosso país era algo restrito ao nosso território até um tempo atrás. Ela só poderia ser entendida por pessoas que vivem no Cazaquistão. Só agora, a partir de cerca de 2015, a geração que cresceu conosco, que viveu tanto os anos 90 sem internet quanto o mundo atual com internet, está criando novos conteúdos que podem interessar ao mercado global. A cultura nômade do Cazaquistão é muito rica. Tem uma longa e vasta história, que pode ser revelada por muito tempo e interpretada de diferentes maneiras. Na verdade, nossa música é a mesma música do mundo inteiro, ela tem seu próprio estilo, sua própria forma e sua marca”, explicam os integrantes do Ninety One.
O Ninety One surgiu de um projeto que buscava criar o primeiro grupo de “ídolos” do Cazaquistão nos moldes do k-pop. Um dos integrantes, o ACE, já era familiarizado com o k-pop após ter passado dois anos e meio na Coreia, como trainee da SM Entertainment. Apesar do processo de seleção ser semelhante e as inspirações no k-pop, para o Ninety One as cenas também possuem diferenças sutis, mas que fazem a diferença. “Para falar a verdade, a principal semelhança entre o k-pop e o q-pop é o rosto asiático do artista. Embora não sejamos inteiramente asiáticos, também não somos europeus. Somos uma nação mista localizada na Eurásia. Mesmo na aparência, essas diferenças são visíveis. Mas, como em qualquer cultura pop, correspondemos precisamente aos padrões mundiais da música. O que nos distingue, naturalmente, é o idioma e provavelmente o DNA. Porque ninguém mais pode ver o mundo como nós o vemos. Assim como não podemos ver o mundo como os outros o veem. Cantamos sobre o que vivemos. Portanto, em nossas melodias, em nossos sons, há exatamente o que você não pode encontrar em outros lugares. Esta é uma diferença muito sutil e espiritual. Além disso, temos um sentimento de rebelião, de liberdade e de luta pela liberdade. Porque esta é a nossa sociedade, vivemos nesta sociedade. Nosso ambiente nos influencia a criar esse tipo de música. Nós nos esforçamos para escrever exatamente o tipo de coisas que as pessoas pensam. De certa forma, afastamos as pessoas da realidade. Quando os afastamos da realidade, mostramos-lhes uma realidade alternativa que poderia existir ou já existe, mas as pessoas não a veem”, explica o grupo. Conscientes da importância cultural de um movimento que discute sobre a história do país e a apresenta não apenas para os jovens de seu país, mas para o mundo, o Ninety One acredita que essa é uma função própria da cultura pop: “De fato, a cultura pop é o motor das pessoas em busca da unidade e a unificação, para que as pessoas possam falar e se comunicar sobre algo comum. Portanto, vemos uma nova cena musical no Cazaquistão mais aberta, mais pronta para a cooperação, para tratar seus ouvintes com compreensão. Porque a base do q-pop não é apenas identificação e liberdade, mas também comunicação e unidade”.
Esse sentimento de liberdade citado pelo Ninety One tem muito a ver com a história do Cazaquistão. A história dos cazaques teve início no século 15, mas a partir daí o território foi dominado pelos czares russos, até a adesão à União Soviética, na década de 1920. A independência do Cazaquistão aconteceu apenas em 1991 e o nome do grupo vem justamente do ano que marcou o fim do vínculo do país com a república soviética. O resultado entre uma cultura centenária e uma geração que se relaciona com a cultura ocidental originou o Ninety One e o q-pop.
“Por meio da música, e de qualquer produto cultural, você pode mostrar sua história e a cultural a que você pertence e onde estão suas origens. Isso é importante para nós, para o povo do Cazaquistão, nos identificarmos nesse fluxo de informações e queremos compartilhá-lo com o mundo. Em videoclipes, canções, programas de TV e outros tipos de conteúdo, tentamos trazer referências dos velhos tempos e mostrá-los da maneira moderna. A história nômade é muito misteriosa, pois existem poucos registros sobre como essas pessoas eram e como viviam. Também nos interessamos pela nossa história, por isso sempre tentamos fazer experimentos em nossa arte. Já fizemos esse tipo de experiência no videoclipe ‘Men Emes’. Também escrevemos nosso próprio ‘paiym’ (quadrinhos em cazaque). Há também o Cazaquistão moderno, que tem sua própria história. Qualquer pessoa, mais cedo ou mais tarde, chegará ao ponto em que começará a procurar por si mesma. E quando eles começarem esta busca, eles irão tropeçar nesses conteúdos. Este será um grande motivo para encontrar pessoas com o mesmo pensamento, para se unir, para falar sobre algo em comum, buscar algo junto com uma multidão de pessoas. Para isso, existem essas alavancas culturais”, acredita o Ninety One.
Além de trazer elementos da memória coletiva do Cazaquistão para músicas pop com estilos mais atuais, outra forma que o Ninety One encontrou de tornar o q-pop um meio de apresentação da cultura cazaque para o mundo foi na linguagem. O país possui dois idiomas oficiais, o cazaque e o russo. Enquanto a maioria do país é composta de cazaques, o russo ainda é considerado o idioma predominante no país. Para manter a identidade de seu povo originário, o q-pop é uma música cantada em Cazaque. “Decidimos cantar em cazaque para popularizar o idioma e introduzi-lo entre os jovens do país, para que depois possamos exportá-lo”, explica o Ninety One. Apesar de ser falado por uma boa parcela da população, ainda há aqueles no país que optem por manter o russo em situações “formais”. “O uso da língua cazaque nos negócios, na vida cotidiana, na ciência, em geral em qualquer indústria do Cazaquistão é muito baixo, mesmo que 70% da população sejam cazaques. Provavelmente, nossas ações são confundidas com políticas devido ao fato de que levantamos essas questões em nossa música, uma vez que essas ações deveriam ser realizadas pelo governo. Acreditamos que a língua cazaque é muito flexível, melódica e bela. Isso pode ser algo novo para pessoas que desejam aprender novos idiomas. Porque a cada novo idioma você adota uma nova cultura. A língua cazaque apresenta sobre um novo mundo turco do nosso povo nômade”.
Falar diretamente com os jovens e se responsabilizar em representá-los é algo arriscado. Quando o rock começou a conquistar os jovens ocidentais nos anos 1960, houve quem questionasse aquele estilo musical como algo que estivesse “pervertendo” a juventude, o que gerou uma onda de protestos contra o estilo em diferentes momentos da história. Com sua independência muito recente, há apenas 30 anos, o Cazaquistão passa agora por momentos de libertação que alguns países já vivenciaram há anos. E o Ninety One aparece liderando esse movimento. Ao trazer para o país influências da cultura ocidental, o grupo virou alvo de protestos no país. A população mais conservadora considerou que os rapazes estavam “corrompendo a juventude” do Cazaquistão. O motivo? O visual dos rapazes, com roupas coloridas, cortes de cabelo diferentes e uso de maquiagem não seria “aceitável” para o público do país, pois iria contra a imagem do “homem cazaque tradicional”. Uma repetição de um discurso que já ouvimos exaustivamente também no ocidente.
No caso do Cazaquistão, essas mudanças nas concepções sobre imposições e estereótipos sobre questões de gênero e sexualidade ainda estão engatinhando. O país, depois da independência da União Soviética, se voltou para seus “valores tradicionais” e as influências ocidentais no estilo do Ninety One acabaram levando o grupo para o centro de uma polêmica social, algo que eles enxergam como um momento divisor de águas. “Na verdade, é muito legal. Porque não só os cantores de rock enfrentaram isso, mas também o hip-hop e outros artistas, ou seja, qualquer pessoa que trouxe algo novo para o mundo. Até mesmo Steve Jobs na tecnologia passou por isso. Quando você traz algo novo para o mundo, sempre assusta as pessoas. As pessoas têm medo do desconhecido, ou seja, você apenas mostra às pessoas seus medos. Mas quando as pessoas superam o medo, elas passam para um novo nível, tornam-se gratas a você. Também somos gratos às pessoas por termos seguido este caminho. Superamos nossos medos e eles superaram os deles. Assim, ocorreu uma troca de energias. Hoje em dia, não há grandes comícios ou cancelamentos de shows nas cidades do Cazaquistão, não há deputados que dizem que estragamos o povo cazaque. Mudamos para um novo nível junto com as pessoas. É legal saber que você tem essa responsabilidade”, conta o grupo. “Não lidamos com a crítica, nós a experimentamos, vivemos, digerimos e nos tornamos melhores”, acrescentam os integrantes, com maturidade.
Esse envolvimento em mudanças no país e a relação do Ninety One com a história do Cazaquistão acaba trazendo o grupo para discussões sociais e políticas, relação essa que eles querem manter uma distância de segurança. “Não nos envolvemos em política. Simplesmente indicamos problemas sociais que podem ter afetado de alguma forma a política. Na verdade, não temos nada a ver com a política. Não somos políticos, somos artistas. Simplesmente descrevemos o que vemos em nossa música. Vivemos os problemas sociais do país junto com as pessoas. Não há nada de apolítico nisso. Talvez as próprias pessoas encontrem algumas referências em nossas músicas. Talvez sejamos apenas um espelho da sociedade. E as pessoas vejam política nisso já que a sociedade está diretamente relacionada à política. E este é um ciclo sem fim”, explicam.
Com tanto envolvimento em questões sociais do país, não fica difícil imaginar os integrantes do Ninety One como jovens ativistas e engajados em questões sociais. Mas antes disso, eles são artistas e jovens como de qualquer outro lugar, com gostos com os quais qualquer um pode se identificar. “Ouvimos o que todos estão ouvindo. Somos amantes da música. Escutamos desde música étnica até clássica, desde pop até heavy metal. Ouvimos o que gostamos. E sempre tentamos experimentar algo diferente em nosso som. Não temos uma referência específica. Ouvimos de tudo de diferentes países, em diferentes idiomas e gêneros”, eles resumem. Prova disso é a forma como os integrantes se aproximaram da música e da carreira artística.
“Eu cresci ouvindo vários tipos de músicas, principalmente da cultura pop americana, eu costumava assistir muito a MTV. Meus irmãos mais velhos ouviam fitas cassete, então desde o começo eu estava perto da música. Queria ser mais do que sou por meio da música. Meu amor pela arte surgiu desde a infância. Eu queria ser rapper, porque quando estava na segunda série, meu filme favorito era ‘8 Mile – Rua das ilusões,’, do Eminem”, conta ZaQ.
Ace e Alem contam que aprenderam a cantar quando ainda eram crianças. “Inconscientemente, eu costumava cantar novamente todas as músicas que ouvia. Depois, esse hobby se transformou em algo mais sério. As músicas que eu ouvia em filmes e desenhos animados me influenciaram muito. Comecei a cantar na escola. Decidi continuar minha carreira artística e fui para a faculdade de música. Comecei a estudar canto mais profundamente. Mais tarde, fiz o teste para a empresa coreana SM Entertainment. Eu treinei na Coreia por dois anos e meio. De volta à Almati (maior cidade do Cazaquistão), entrei no Ninety One”, relembra ACE, que confessa que entrou para o Ninety One sem precisar de um período de treinamento no Cazaquistão, graças à sua experiência como trainee em uma das maiores gravadoras do k-pop. “Desde o ensino fundamental, todos me pediam para cantar nos shows da escola. Foi quando meu pai me disse que o destino estava predeterminado e que eu me tornaria um artista. Além disso, eu não sabia de nada além de cantar. Então eu não tive escolha”, conta Alem, que foi um dos participantes do “The Voice Of Kazakhstan”, versão do Cazaquistão do formato popular de competição musical, antes de ingressar no Ninety One.
Já Bala fala que se interessou pela música de uma forma diferente: ele quis cantar porque gostava muito da música de abertura da série “Drake & Josh”: “Naquela época, eu tinha apenas 10 anos. E quase todos os dias eu me sentava na frente do computador e cantava músicas diferentes. Eu era ruim em matemática, então tive que desistir do meu sonho de me tornar um arquiteto ou especialista em tecnologia da informação. E como eu era bem melhor cantando, acabei escolhendo a faculdade de música. Estudei lá por um ano. Durante esse tempo, fiz amigos e formei uma banda. Eu era o vocalista, meu amigo Zhakan era o pianista e meu outro amigo Yeshuabek era guitarrista e baterista. Chamamos o grupo de “Brotherhood”. E começamos a fazer covers de canções de artistas estrangeiros. E a partir daí vivemos felizes para sempre”, ele lembra. Mas esse “felizes para sempre” durou apenas até surgir a oportunidade de formar o primeiro “grupo de ídolos do Cazaquistão”. Bala conta que a banda do colégio chegou ao fim por causa do da seleção que formaria o Ninety One, e que não partiu dele o interesse de entrar no programa. Na verdade, sua participação no grupo precisou de muita insistência dos empresários que criaram o Ninety One.
“Yeshuabek foi responsável por isso. Sem nos informar, ele nos inscreveu no projeto “K-Top idols”. A primeira ligação veio da gerente do projeto. Ela disse que ninguém passou, exceto eu. Eles me ligaram, mas eu recusei. Eu não queria sair da banda. Passou meio ano e veio o segundo telefonema. Ela disse que o produtor do programa iria para Nursultan (capital do Cazaquistão, que na época era chamada de Astana) por conta própria para conversar comigo. Era Yerbolat Bedelkhan (ídolo jovem do Cazaquistão, integrante do grupo Orda). Nos conhecemos e meu pai estava comigo. Eles conversaram mas eu não estava seguro. Concordamos no início, mas rejeitamos a oferta uma semana depois. Eu não queria ir e meus pais estavam preocupados com o fato de que eu precisaria ir sozinho para outra cidade e isso atrapalharia meus estudos. Eu tinha 16 anos na época. Depois, veio a terceira ligação. Foi a mesma diretora de antes. Ao final da conversa, ela se ofereceu para eu ficar no projeto por duas semanas e só então decidir se ficaria ou não. Ela disse ‘você ainda é jovem, não há nada a perder. Você pode ir embora se você não gostar’. Fui e decidi ficar. E aí começou um novo capítulo da minha vida”, conta Bala.
Realizando o sonho de trabalhar com a música, os integrantes do Ninety One sonham agora em levar a música do Cazaquistão para o mundo. “Vemos e acreditamos que por meio do q-pop é possível levar o Cazaquistão para o cenário mundial, apresentá-lo na direção certa, mostrá-lo ao mundo moderno, a partir da posição de um país moderno, não em desenvolvimento, mas já desenvolvido com cultura e experiência estabelecidas. Acreditamos que a língua cazaque pode realmente se tornar uma tendência em nossa sociedade e ser interessante para as pessoas aprenderem. Porque tem a sua profundidade, a sua lógica e a sua beleza. Todos nós aprendemos línguas diferentes – francês, coreano, chinês, etc. O Cazaquistão aceita essas línguas. Para pessoas interessadas em idiomas, o q-pop pode ser uma ferramenta interessante para aprender algo novo. Podemos trazer algo novo”, eles sugerem. Para quem está conhecendo o Ninety One agora, eles dizem que gostariam de dar “boas vindas a um novo mundo”. “Esperamos que as pessoas que ouçam Ninety One descubram um novo mundo onde possam obter para si mesmas algo completamente novo, necessário e eterno”.
“Na verdade, a cultura do Cazaquistão é muito rica e variada com sua história, que ainda não foi totalmente divulgada para o mundo. Claro que vamos revelar isso do nosso jeito, de acordo com a nossa visão do nosso trabalho. Isso já começou no videoclipe ‘Men Emes’ e vai continuar. Não apenas por meio da música, não apenas por meio de videoclipes, e talvez por meio de vários instrumentos do futuro”, eles acreditam. Para quem quer conhecer mais sobre o trabalho dos precursores do q-pop e descobrir mais sobre a cultura do Cazaquistão, eles garantem que usaram as redes sociais para interagir com pessoas de todo o mundo.
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